Monday, April 28, 2008

Lírios Brancos.

-"Vamos?"
E ela fechou os olhos.


O choro era baixinho. Daqueles que não é de raiva ou agonia, era de tristeza por perder um ente tão querido como um pai. O telefone tocava sem parar, mas Alice estava apressada demais tentando ligar para seus irmãos. Ela rodava a casa em círculos e o cheiro de amônia impregnada em suas roupas lhe lembrava o hospital. Aquele era um ambiente muito familiar para ela, que quando garota perdeu a mãe num trágico acidente de carro.
-" Pare de ultrapassar as merdas dos carros Leon! Você bebeu foi? Eu falei para dormirmos lá! Você está bêbado, merda?"
-"ah, cale a boca!"
-"Não me mande calar a boca! Preste atenção! Olhe pra frente! Olhe pra fren...!"
Era branco. O teto era branco. Na verdade tudo que Alice lembrava era branco. A notícia saiu em muitos jornais. "A pobre menina de 8 anos que fica orfã de mãe e passa 3 meses em coma no hospital". Detestava pensar naquilo. Até porque só sabia o que lhe contavam e o maldito cheiro de hospital lhe atormentava as narinas lembrando-a dos seus bracinhos finos perfurados por grossas agulhas de soro.
As crianças já estavam arrumadas e penteadas, sentadas no sofá. A mais nova tentava acalmar a mais velha que baixinho chorava em prantos.
-"As crianças não se conformam, mas todos esperavam isso. Sim, eu sei Jill. Eu cuidava dele todo dia. Bom, eu to saindo agora. Nos vemos lá. Até." - disse Alice, desligando o telefone, tomando a mão das filhas levando-os para o peugeot prateado novo que havia comprado a pouco tempo.
Ajeitou a pequena Marina na cadeira de babê no fundo e disse para Isabella colocar o cinto. Abriu a garagem, entrou no carro e já ia partir quando lembrou-se de tirar o maldito sobretudo sujo e fedido de hospital, sobretudo este que usava à dias quando visitava seu pai. Mas sentiu uma leve preguiça e resolveu apenas jogá-lo no banco de trás do peugeot.
O cemitério era um lugar tranquilo para Alice. Sempre ia lá para visitar o túmulo da mãe. Cobria-o com lírios brancos tirava as ervas daninhas sempre que possível. Mas agora ela ia enterrar o pai. E passou o caminho todo pensando nisso.

Jill era uma ruiva magnífica. Ao contrário de sua prima não tinha filhos, adorava virar a noite em boates e vivia em encrencas apesar de ter quase a mesma idade dela. Estava esperando Alice no estacionamento.
-"Sinto muito Alice. O Tio Leon era um homem maravilhoso." - disse beijando o rosto da prima.
-"É...era mesmo." -respondeu secamente.
O enterro foi reservado. Poucas pessoas foram. Não era uma familia grande e muito menos unida. O caixão foi engolido pela terra e as flores cobriram a madeira fria. Todos observavam calados e muitos abraçavam-se mutuamente. Mas Alice apenas observava, acariaciando o cabelo louro da primogênita.
Após fincarem a lápide, os parentes foram se dispersando com os olhos molhados. As pequenas tinham o rosto inchado e choravam muito. Mas a mãe não lhe deu atenção. Não conseguia tirar os olhos da lápide. Não parava de olhar as letras que não conseguia ler mas demonstrava bastante interesse em suas formas.
O transe foi interrompido com um beijo de Jill. Dizendo que levaria as pequenas para o carro e que a estava esperando.

Sentindo-se aliviada por estar sozinha, ela tirou o óculos. As rugas de raiva em seus olhos haviam sido escondidas esse tempo todo. Agachou-se na lápide e sussurou baixinho em tom de censura para a pedra fria.
-" Você devia ter morrido naquele dia, velho maldito. No dia em que matou a minha mãe."- e levantou-se cobrindo os olhos e andando em direção ao estacionamento onde havia deixado o carro.
Jill ofereceu-se para levar o carro e Alice sentou no banco da frente após ajustar as filhas no banco de trás.
-"Vamos?" - Jill ligou o carro.
Alice suspirou fundo fechando os olhos.

Wednesday, April 02, 2008

O Jantar

A mesa já estava posta, e o movimento das criadas pondo os talheres prateados em suas devidas posições seguiam os ruidos de portas se abrindo e fechando. Apoiado sobre os cotovelos que amassavam o linho egípcio, ele suspirava rangendo os ossos.
Aos poucos os convidados foram chegando, e todos, como num frio ritual aproximavam-se do velho e lhe davam falsos abraços. As gordas senhoras da alta sociedade ostentando pesadas pérolas roçavam-lhe os ossos do pescoço e davam molhados beijos púrpuras que lhe carimbavam as bochechas. Mas os que viam teus olhos se agonizavam em meio ao brilho pesaroso deles.
Após um longo tempo de drinques e passeios pela casa, os convidados, que antes fofocavam sobre a decoração, as mobilias ou sobre qualquer objeto de valor que estavam ao alcance de teus olhos, começaram os sussurros curisosos sobre o motivo de tal importante jantar numa época não festiva como aquela. Ainda lembravam do frio que os cercavam fora da mansão e das carruagens molhadas da chuva pesada.
Saindo da porta da cozinha uma dúzia de criados foram avisar que jantar estava posto. Ouvia-se dos cantos da casa os vidros tintilarem e os passos desesperados dos abutres famintos que tentavam desengonçadamente se aninhar em seus assentos dourados sem empurrar uns aos outros.
O velho observava calado. As ordens haviam sido claras: a cadeira à sua frente, no outro canto da mesa deveria permanecer reservada.
Ninguém sabia mas a poderosa dama de negro, tão negro quanto os quartos escuros e abandonados da velha mansão estava o tempo todo ali, no canto da sala, a observar cada um, sentada numa poltrona de veludo verde-esmeralda meio puida.
A mesa já estava cheia. Só faltava um lugar a ser ocupado, um lugar que a jovem, branca feito os lírios que enfeitavam a mesa, de roupas negras e olhos profundos ocupou sem maiores cerimônias.
Era chegada a hora. O velho, que desde o começo do evento permaneceu sentado, levanta-se e empunha uma taça de vinho tinto, da melhor safra como lhe dizia a fama, e faz um movimento pedindo silêncio.
O rosto desconcertante dos visitantes lhe dá a sensação de que tudo corria bem. Era óbvio que ele sabia que estava de pijamas, e pouco caso fazia disso. Um dia isso não fará diferença alguma.
"Senhores e Senhoras aqui presentes, muitos que aqui estão, estão pela comida. Pelo delicioso pernil, pelo famoso vinho e pelo luxo das taças com que o beberão. Outros estão aqui para manter as aparências de que ainda são ricas, ou que ainda são nobres. Mas todos os que estão aqui certamente não ostentam o último título. Pois a nobreza, meus senhores não está no pão que se come, estã no pão que se dá."
Os serviçais abrem sorrisos discretos atrás das portas. Ao longo da mesa nota-se inúmeros rostos com inúmeras expressões. O gordo de careca vermelha bufava de raiva, a velha magrela de dedos esguios apenas concentrava-se no bordado da mesa como se este fosse a única coisa que a concentraria para que ela não admitisse as verdades que o velho falava. A garota de negro apenas sorria.
Após uma longa pausa o velho prossegue:
" Os Senhores devem estar a se perguntar por qual motivo um velho como eu estaria fazendo um jantar numa época tão incomum, pois bem! direi-lhes sem arrodeios. Estou aqui para me despidir. Estou dando adeus a todos o que estiveram em minha vida, solitária vida que segui após a morte de Madeline, minha falecida esposa..." - Diz levantando os olhos para o quadro da amada a sua frente.
..." Portanto decidi dar pessoalmente um adeus a todos, que apesar da falsidade, que não só como suas jóias lhe pesam a alma, estiveram me observando como um condor que persegue a lebre para então ataca-la."
Nessa hora muitos levantam-se indignados e saem do jantar sem olhar para o anfitrião. "A verdade dói" - pensa.
" Os meus bens serão doados à todos os pobres da região sobre o encargo de um amigo de confiança e curiosamente também criado da família. Todas minhas ações e esta mansão ficarão aos cuidados dele. Desejo a todos uma boa boa vida, tal qual a minha jamais foi e uma ótima morte, como a minha está sendo. "
Nessa hora a dama se levanta e lança ao velho um aconchegante sorriso. Calmamente rodeia a mesa e toma-lhe a mão. Trazendo frio e luz.

Ouve-se o baque do corpo no chão e o grito das senhoras. A taça de vinho é derramada molhando o carpete. Serafin surge correndo da cozinha ao ouvir o choro desesperado das criadas. "É meu amigo. Como o senhor havia dito, chegou o fim." - pensou.

Dias passam-se, garotinhos vendendo jornais gritam a plenos pulmões sobre a trágica notícia do falecimento de uma figura muito importante. Aristocratas reunem-se ao redor de suas luxuriosas lareiras e brindam ao morto. Muitos se lembram do trágico ocorrido. Do fúnebre e ácido discurso. Mas ninguem se lembra da mulher de negro. Apenas da incomoda cadeira vazia que assim permaneceu por todo jantar.

Paula Oliveira